terça-feira, 18 de março de 2014

O Bonde e o Professor

 
 
 
O bonde e o professor
 
Ainda nos anos 50 e 60, em Salvador, cidade onde nasci, vivia  eu então, no bairro do Garcia, bem em frente ao Colégio Antônio Vieira,  no antigo sobrado de construção colonial, onde no térreo funcionava a padaria do padeiro galego – meu pai. O bonde do Rio Vermelho, já de longe anunciava quando vinha vindo. Os meninos mais afoitos costumavam deitar o ouvido no trilho metálico e assim escutar a sua vibração. O bonde subia e descia, regularmente, a correr nos seus paralelos  trilhos, como a obedecer à rotina do povo pacato daquele lugar. O bonde era pontual. Assim como, também era aquela figura, notável pelos seus hábitos, do homem calado, educadamente refinado, um intelectual, que se via todos os dias vestido discretamente em terno claro e gravata. Costumava comprar pão lá na padaria, geralmente pelas tardes. Sempre no meio do povo, ao subir e descer do bonde, pé no estribo, trazendo um livro embaixo do braço. Pequenos detalhes o faziam distinguido, como sendo pessoa especial, e assim o era.  Conhecido professor de Português de escolas e colégios de Salvador, era também um professor de cátedra. Professor de  Estilística da Língua Portuguesa. Naquele tempo a figura do professor simbolizava respeito e acato. Refiro-me ao emérito Professor Raul Sá.
Quem foi estudante, nessa época em Salvador, por certo foi seu aluno ou então, já tinha ouvido sobre o seu gabarito e da sua fama. Ainda no Colégio das irmãs Sacramentinas, e mais tarde no colégio da Bahia, em Salvador, tive a honra de ser aluna do Professor Raul Sá. Além de morarmos no mesmo bairro, também frequentávamos o mesmo colégio, eu, e as duas filhas do professor.
Diante de um olhar, tão marcante, sob as lentes de grau elevado que usava, suscitava um profundo respeito. Parecia até que estava a ler os nossos pensamentos. Durante a sua aula ninguém ousaria perturbar.
Conhecedor profundo da obra de Aloísio de Azevedo, O Cortiço, acho que lhe dava prazer transitar entre os prédios antigos das ruas de Salvador, fato que, provavelmente, o identificaria com o cenário do romance do referido autor. Quem sabe a vivenciar em cada pardieiro, aqueles personagens, tão bem descritos e marcantes, como se fora uma pintura da época, a paisagem urbana e seus personagens, tão bem elaborada, literariamente,  uma pintura expressiva, feita em largas pinceladas, em cores próprias, não fugindo ao detalhe, todavia, mostrando a situação de vida daquela gente; romances e dramas, ainda  num Brasil Colonial.  
Outro dia, somente pelo prazer de rever antigas paisagens, e também  de poder recordar meus dias de menina e adolescente, caminhava eu, em companhia de Frank, meu esposo. Iniciamos nossa jornada a partir do Corredor da Vitória, e depois, passando pelos jardins do Passeio Público, (hoje totalmente decadente, assim como o palácio ao lado), alcançando a seguir o Forte de São Pedro e,  todo o atabalhoado trecho da Avenida Sete de Setembro, alcançando a seguir o Largo de São Bento, e de quebra,  o prazer em visualizar a estridente beleza da baía azul –, de todos os santos, e, minha também...
Da Praça Castro Alves, subindo a Rua Chile, enfim, fui dar  ao Centro Histórico de Salvador, por andei entre as pessoas do lugar, a observar ensimesmados turistas e condescendentes baianas, em suas tradicionais vestes, sempre atraentes e sorridentes. Embrenhei-me no meio do agitado povo por aquelas ruas e becos apertados, e olhe que não me apoquentava, aquele forte odor, típico cheiro amoniacal, (sublimação da causa justa...), enfim, sentindo a alma do povo baiano, e a minha também. Vez por outra, os fantasmas do passado faziam-se presentes. E ali, à esquina da antiga Faculdade de Medicina da Bahia, visualizei a figura circunspeta, sempre  de óculos, do  Professor Raul Sá. Seguia ele vestido em seu habitual terno de linho, livro embaixo do braço, como sempre de cabeça baixa. Via-o  todo respeitoso, a descer a ladeira do Pelourinho...
Realmente, fiz uma agradável viagem no tempo. Ao cenário do Cortiço, ao lado dos personagens de Aloísio de Azevedo, mas, principalmente, recordando aquele digno mestre da língua portuguesa,  o nobre Professor Raul Sá, aqui perpetuado em o “Bonde e o Professor”, texto da minha autoria.
Amália Grimaldi
Março, 2014-03-18

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