quinta-feira, 6 de abril de 2017




A Janela do Sobrado

(“Crônicas do meu tempo” - Amália Grimaldi - 2014)

É madrugada ainda. Vejo o Sol conduzir ao seu lugar destinado uma noite que se retira lenta. Segue levando consigo meus suspiros, e a lembrança de uma noite mal dormida. Ainda vejo estrelas, a refletir o brilho do mistério deste breve instante. Contemplo a aurora. Me visto de sonhos.

Lá longe, aquelas longas árvores? Não seriam aqueles históricos cipestres saídos das páginas do meu lendário catecismo?  Ah, já sei – lá estaria a curva da estrada para Damasco!

 A janela do velho sobrado abria-me as portas para um mundo distante. Entrava e saía sem cerimônia. Até que um dia, na viagem de retorno me perderia. Os ciprestes desapareceram da minha paisagem. Em seu lugar via surgir um denso cortinado verde. Seria uma plantação de eucalipto, supridor da nova fábrica de papel lá no bairro do Rio Vermelho. – Como crescia ligeiro!  Não é que a minha estrada para Damasco desaparecera por completo! Por um instante parei de sonhar. Mas, o desejo de viajar por terras sagradas do Oriente seria bem mais forte. Na verdade fui crescendo, e outras janelas, com o tempo se abririam. Sobrevive-se em sonhos, é verdade. Intimista, reinventava aquelas histórias de paisagens bíblicas, que tão bem ilustraram parte da minha infância, vivida num internato de um conhecido convento católico na cidade do Salvador.  

Ah, a janela do sobrado... Caiados em fingimento branco, vultos de almas da noite dançavam naqueles muros altos. A acolher as sujidades das ruas ao vento, no bairro do Garcia onde morava, havia um enorme quarteirão, era um patrimônio cobiçado de vasto terreno baldio. Na guarda desse grande vazio, ameaçadores, estilhaços de vidro encimavam previsões nefastas. A vagar pela noite escura, veria ainda, assombrações de outros. Seria a alma penada do ameaçador agiota em busca de seus dinheiros perdidos?

A janela do sobrado há muito se fechara. Na sala da frente, antes habitada por réstias luminosas geradas por frestas de paredes rasgadas, encontraria apenas sombras, as do que fora antes. E as minhas tranças, censuradas, lá as via ao chão de antigamente, ao lado da temível tesoura. Ah, – o tempo, inexorável! E eu, à curva de uma estrada longínqua, ainda a perder-me em devaneios primaveris. Ora segura, encontrar-me-ia à esquina dessa minha rua, entre a padaria do galego meu pai, e o armazém do português meu vizinho, ainda em busca de estimado rascunho, do que antes se apagara – o leve poema da menina do sobrado grande.

Mas, qual tempo poderia ser melhor? Inverno ou Verão? Já vejo o pássaro azul, fiel à estação, e temente ao vento súbito, provavelmente construirá seu ninho em lugar seguro. Observo que carrega o que parece ser o último naco do dia. Amanhã voltará. Ou quem sabe, não mais. Amanhã, provavelmente, outros pássaros virão.


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