O
bonde e o professor
Ainda
nos anos 50 e 60, em Salvador, cidade onde nasci, vivia eu então, no bairro do Garcia, bem em frente
ao Colégio Antônio Vieira, no antigo
sobrado de construção colonial, onde no térreo funcionava a padaria do padeiro
galego – meu pai. O bonde do Rio Vermelho, já de longe anunciava quando vinha
vindo. Os meninos mais afoitos costumavam deitar o ouvido no trilho metálico e
assim escutar a sua vibração. O bonde subia e descia, regularmente, a correr
nos seus paralelos trilhos, como a
obedecer à rotina do povo pacato daquele lugar. O bonde era pontual. Assim como,
também era aquela figura, notável pelos seus hábitos, do homem calado,
educadamente refinado, um intelectual, que se via todos os dias vestido discretamente
em terno claro e gravata. Costumava comprar pão lá na padaria, geralmente pelas
tardes. Sempre no meio do povo, ao subir e descer do bonde, pé no estribo, trazendo
um livro embaixo do braço. Pequenos detalhes o faziam distinguido, como sendo pessoa
especial, e assim o era. Conhecido professor
de Português de escolas e colégios de Salvador, era também um professor de
cátedra. Professor de Estilística da
Língua Portuguesa. Naquele tempo a figura do professor simbolizava respeito e
acato. Refiro-me ao emérito Professor Raul Sá.
Quem
foi estudante, nessa época em Salvador, por certo foi seu aluno ou então, já tinha
ouvido sobre o seu gabarito e da sua fama. Ainda no Colégio das irmãs Sacramentinas, e
mais tarde no colégio da Bahia, em Salvador, tive a honra de ser aluna do
Professor Raul Sá. Além de morarmos no mesmo bairro, também frequentávamos o
mesmo colégio, eu, e as duas filhas do professor.
Diante
de um olhar, tão marcante, sob as lentes de grau elevado que usava, suscitava um
profundo respeito. Parecia até que estava a ler os nossos pensamentos. Durante
a sua aula ninguém ousaria perturbar.
Conhecedor
profundo da obra de Aloísio de Azevedo, O Cortiço, acho que lhe dava prazer
transitar entre os prédios antigos das ruas de Salvador, fato que,
provavelmente, o identificaria com o cenário do romance do referido autor. Quem
sabe a vivenciar em cada pardieiro, aqueles personagens, tão bem descritos e
marcantes, como se fora uma pintura da época, a paisagem urbana e seus
personagens, tão bem elaborada, literariamente, uma pintura expressiva, feita em largas
pinceladas, em cores próprias, não fugindo ao detalhe, todavia, mostrando a situação
de vida daquela gente; romances e dramas, ainda num Brasil Colonial.
Outro
dia, somente pelo prazer de rever antigas paisagens, e também de poder recordar meus dias de menina e
adolescente, caminhava eu, em companhia de Frank, meu esposo. Iniciamos nossa
jornada a partir do Corredor da Vitória, e depois, passando pelos jardins do
Passeio Público, (hoje totalmente decadente, assim como o palácio ao lado),
alcançando a seguir o Forte de São Pedro e, todo o atabalhoado trecho da Avenida Sete de
Setembro, alcançando a seguir o Largo de São Bento, e de quebra, o prazer em visualizar a estridente beleza da
baía azul –, de todos os santos, e, minha também...
Da
Praça Castro Alves, subindo a Rua Chile, enfim, fui dar ao Centro Histórico de Salvador, por andei
entre as pessoas do lugar, a observar ensimesmados turistas e condescendentes baianas,
em suas tradicionais vestes, sempre atraentes e sorridentes. Embrenhei-me no meio
do agitado povo por aquelas ruas e becos apertados, e olhe que não me apoquentava,
aquele forte odor, típico cheiro amoniacal, (sublimação da causa justa...), enfim,
sentindo a alma do povo baiano, e a minha também. Vez por outra, os fantasmas
do passado faziam-se presentes. E ali, à esquina da antiga Faculdade de
Medicina da Bahia, visualizei a figura circunspeta, sempre de óculos, do Professor Raul Sá. Seguia ele vestido em seu habitual
terno de linho, livro embaixo do braço, como sempre de cabeça baixa. Via-o todo respeitoso, a descer a ladeira do
Pelourinho...
Realmente,
fiz uma agradável viagem no tempo. Ao cenário do Cortiço, ao lado dos personagens
de Aloísio de Azevedo, mas, principalmente, recordando aquele digno mestre da
língua portuguesa, o nobre Professor
Raul Sá, aqui perpetuado em o “Bonde e o Professor”, texto da minha autoria.
Amália
Grimaldi
Março,
2014-03-18