quinta-feira, 29 de outubro de 2020

A voz do muezim

 Melbourne, manha fria de outono. Não muito longe da zona de expansão, o minarete da mesquita sobressai. Desconforto do olhar, o emaranhado das linhas ferroviárias suburbanas, que se cruzam no entorno da cidade, incomodam. Mais adiante, o largo patio ladrilhado do templo islâmico, ora ao meio-dia, -se desolado. Um baldio de sombras. Ja  me assustam os mitos, duendes e elfos, muito além do conto, e verdades que, através do mistério de véus, poderão falar.

 Aquela hora do dia o sol  dividia sombras. Duvidas. De longe  avistava o perfil conhecido daqueles telhados pontudos das barracas de frutas. Costumava chegar cedo ao mercado. Mas, desta vez, vozes de seus usuais mercadores não se ouviam. Pouca gente. Um contagiante desmaio de alegrias tornavam pálidas muitas vontades. A minha e a de muitos outros. Mantinha distancia restritiva. Atrás da mascara, aquela voz arrastada, velada voz, a de incompreendidos. Os que vendem e os que compram. No pigarro seco, entendida divergência de pensares. Regras, códigos e sinais, opiniões e convicções, guardam discrepâncias gramaticais. “Merci, madam... Thanks, my dear... Como estas senora… Grazzie mille…” Ah, como sentia falta daquela costumeira polifonia do mercado!

Lembrava-me de alegrias passadas, quando quermesses faziam o centro das festas de largo. Igreja iluminada,  o coreto e a filarmônica. Alfazemas e sorrisos. Abraços e apertos de mão. A malícia do olhar, e o lirismo todo. O silencio as vezes poderá nos revelar o sussurro de coisas esquecidas. Na verdade, devolvendo uma parte do nosso eu, esse frágil inquilino,  o silencio fala. Sim, através de caras imagens que deixamos para traz e que por vezes nos vem a mente. Talvez a completar um certo vazio de anseios,  nesse mundo caduco de falas sem retorno, mundo desacreditado, onde portas de oportunidades, para muitos,  encontram-se fechadas. Entre a morada do passado e a labuta da mudança para o novo destino, frente a um mundo de forcas em conflito, costumamos mergulhar, quanto mais fundo, mais longe de nos mesmos. E assim, muitas vezes extrapolamos o contorno de possibilidades reais.

Salvador, canção de tempo bom. Oração desencontrada. Em desvio de luzes e sombras oportunas, retorno a minha casa, meu berço. Rococó desmantelado pelo tempo.Baixa dos Sapateiros, festa de todo dia.  Mercados coloridos de alegrias.  Contorno suas afamadas esquinas, e alamedas de seus muitos bazares. Estou a escutar  aquele chamado estimado:  ‘ Pode entrar, freguesa, faça favor! Salim fazer preço bom...’

 Pedaço aclamado, se fez  morada do libames, e do armênio, por todos chamados de Turco, e do madrilenho, ao lado do português apelidados de Galego. Mesquitas de mercadores. Nesses redutos baianos de fetiches e encantos,  sua voz, dentre outras tantas ressaia. - Voz de muezim. Tudo aquilo se misturava, tudo ali harmonizava, seja no cheiro do acarajé apimentado ou no aclamado quibe de Dona Sara, regado a cominho e carinho. Tudo aí fazia sentido, e agora, em calmo momento, tudo isso me vem a alma falar a cancão,  o alegre idioma baiano da minha terra natal ora distante.

Baixa dos Sapateiros, e o aguaceiro de tardes de verão. Pedra lisa molhada, e no descuido, o escorregão amparado. Não!  Vocês não estão sós.  Logo ali, ao lado do bazar do Turco, uma parada, um bate-papo. Tempo para um cafezinho, um menorzinho no bar do Galego. Conluio, fuxico e maledicências. Entre o cuspe e o esconjuro, ao pé do batente, o grude dos vícios. Mistério de uma rua cruzada, por discrepâncias, e por toda gente.  Uma rua acessível a todos os pensamentos, e acontecimentos.  Reais e impossivelmente reais.

 Atrás de suas portas fechadas, parece residir a etérea alquimia dos sentidos, a envolver todo o mistério de gamelas e de moringas, e dos tachos de cobre cigano, e os vinténs de cartas marcadas. E, de promessas não cumpridas. Os velhos pardieiros parecem resistir na simbologia medieval,  protegidos na marca do Cinco Salomão ao portal.  E, a cortar o mal do olhar, no penico esmaltado, oxidado pelo tempo, Espada de Sao Jorge vinga, ao lado de muitas incertezas, em fervorosas juras de amantes.

Bafo de muitas vozes. Sob as pedras de suas calcadas maltratadas, e sob a veste  da alma de seres do passado,  vive-se hoje um luto. Sim, luto na morte da alegria. E, saudades do quintal da antiga casa, e daquele nosso contentamento nativo. Vejo naquelas paredes destratadas, o limo da umidade que o tempo gerou, toda aquela fertilidade na generosidade, de uma rara humanidade, hoje destratada. 

Mural da nossa cultura, na passagem de gerações, o esboço e a cor se afirmaram no desenho confuso dessa paisagem. Rixa de homens, xingamento, e cortesia em apertos de mão. Do ciume ao ódio,  ao lado de bondades outras, guarda-se dessa humanidade,  o melhor sentido da vida. O abraco espontâneo,  gesto fraternal que por vezes poderá se perder na desdita,  na voz irada que sai da garganta. Tracos de bondade por se recuperar. Conflito de gerações marcam a historia da trajetória de todo ser, no tempo e no seu devido espaço. Ah, esse mundo é mesmo, um eterno vir-a-ser!

Lamento calada as palmeiras cortadas, e o sussurro do vento sumido ao baldio. Enxergo atrás da porta fechada o fantasma de sapatos esquecidos, e o descanso aborrecido, o do que já fora antes. Mas, não! Aquele mercador de panos para mim não morreu. Rolo e driblo tapete à porta, minha estrela ao cordel seguro.  Este lugar, conheço-o muito bem.  O poente não me contradiz. Ausente é a porta de fundos, mas aquele velho cachorro cansado, ao final do dia, ainda volta a aquecer o batente do seu dono.


Amalia Grimaldi, Cronicas do meu tempo. Melbourne, Julho, 2020.