sexta-feira, 4 de julho de 2014

sábado, 28 de junho de 2014

A raça e a pitanga...







A raça e a pitanga

O mogno e o vidro
E a coroa de Ciro.
E, do vil contemporâneo,
Essa grande colina erodida:
A descrença do homem.
E, do caído, a fadiga;
O não Ser. O espaço vazio.
 
Da acácia, as cinzas,
O pó, levará o vento.
Mas, a luz, é quem definirá
A sombra e, o contorno do volume.
A prisão do tempo não tem saída;
Tem calendários. Rosas de ventos...
Caros instantes. Raros caminhos claros.
 
Uma despensa escura
E suas prateleiras incertas;
Seus dias. Meus dias. Cansados dias.
Quem ditaria regras?
Não. Não mais haveria discussão,
Entre o tempo e o fermento,
E o sucesso da massa crescida.
Valor de esperas atrasadas
E, o juízo moral. Razão na emoção...
Sublimação temperada.
Insatisfação consagrada.
 
O cálice, a mulher
E o touro.
Da palavra inútil,
Melhor o silêncio, ou
Um resquício de vergonha.
A dosar engano na guia,
Mão exagerada
Ou, bastar-se a si próprio?
Do azedado vinho,
Tardia aquiescência;
Concepção. Percepção.
Princípio aglutinador.
Salada mista de padeiro galego.
 
A torre e o fidalgo
E o quarto aposento.
Degredo. Segredo.
Pisos magnânimos,
Ídolos esculpidos...
Pouca água. Fala à toa.
O óleo secou de vez,
E, a lamparina,
Há muito se apagou.
 
Ser o crente perfeito.
O sentido da Terra faz
Usos e cultos...
O mestre e o aprendiz.
Iniciante discípulo
Almejar melhor destino.
Homens suados carregam seus fardos.
 
Estão surdos.
Não escutam canções de outros. 
E suas línguas, tão espinhosas,
São que nem urtigas.
Queimam a pele da própria agonia:
...Não... Marrano não sou eu...
 
O velho muro
E a verde gosma.
Do tempo, seus musgos,
Nem sempre aclamados.
Do barro a alma,
A fama não salva.
O Éter. O Planeta,
Obra por concluir.
Assisto o retorno do caracol.
Axioma inicial.
 
Abóbora gigante.
Razão do conflito.
A corte no banquete,
Meu mundo.
Amplitude de esfomeados fartos.
 
No almoço do cristão galego,
Cordeiro não seria imolado,
Mas aquela sua faca, era bem amolada,
e o peru, então, seria assim degolado.
 
Europa, Ásia e África...
Povos do Oriente,
Ciganos passantes. Judeus mascates.
Seda persa de outrora.
Ah, e os vizinhos libaneses,
Lhes chamavam de turcos...
A Casa da Torre,
Visão fugidia. Passadiço de agonias.
Rostos de papel sorriem para mim.
Retorno ao altar comum.
 
Brancas são as bênçãos de Oxalá.
As douradas são de Oxum.
Aos fieis de São Lázaro,
Pipocas alvas lhes são ofertadas
(ainda aguardo o meu quinhão...!).
Mas, aos domingos,
A cumprir alheia devoção
Moeda na mão. Coração aberto.
No aspergir de águas bentas:
Alegria de padre galego.
 
...Branco cavalo de Espanha...
Seu arreio é de prata.
Meu tamanco é de pau.
É de meia pataca.
Senhor do Bomfim é meu pai.
Estrela guia me acompanha.
– Oxalá é o maior!
 
Regresso à casa do tempo.
Abro janelas de satisfação.
Estou onde sempre estive.
Ancorado ao mar de dunas alvas,
Logo adiante, seu glorioso contorno:
A Casa do Navio!
Para sempre afundado
Na sina do vertical moderno.
– Resiste na minha lembrança.
 
Cospe o mar ao vento o sal.
A vidraça embaçada.
Amaralina... Estropiada,
E minha alma, enganada.
Volto à casa desse tempo,
De largas varandas...
Oh, tardes salgadas...!
Suadas de nostalgias.
Cio de mulher...
Um cheiro bom de sargaço
Invade meu ar. Me faz plena.
 
Desses meus dias,
O vento e a canção do mar,
E a fala desse seu canto longe,
Prazer de águas... Lágrimas de sal.
Ladainha desassossegada.
(Amália Grimaldi) 

quinta-feira, 19 de junho de 2014

A mala na praia








Fotografia: Amália Grimaldi


A mala na praia
(Crônicas do dia a dia - Amália Grimaldi)

 

Final de tarde chuvosa. A mala do náufrago ali à minha frente me fez lamentar uma possível viagem interrompida. Destino fatal? 

Ausente de fortunas, contudo, preenchida por residual sentimento, jazia ali à minha frente, na areia da praia, inchada e molhada, a mala do náufrago incógnito. Num relance, imaginei uma possível identidade ou, um perfil adequado para a desconhecida criatura que seria o dono daquela mala que veio dar na praia do Guaibim após forte ressaca.

Um quê de essencial, quiçá da vida humana,  à qual pertencera,  via-se no seu interior algumas peças de roupa já corroídas pelo efeito do salitre. Com certeza teriam sido aqueles pertences parte emotiva do seu dono,  assim, como todas as coisas que nos pertencem e nos cercam no âmbito doméstico. Imaginei suas mãos em cuidadosos movimentos pensados a dobrar aquelas vestes, ajeitando-as do seu modo a fim de caber no limitado espaço da maleta,  justificando assim quem sabe, toda  a energia do elemento pensante aí contido. Energia essa, que por ser imaterial, é infinita. Uma etérea consciência do ser, digamos assim.

 
Seria viagem curta, sem dúvida, pois a quantidade de roupa era pequena. Havia ainda um par de chinelos de couro já gastos pelo uso. Imaginei-os calçados por criatura de hábitos caseiros, provavelmente em rabugento resmungar em torno do pão-nosso de cada dia.  Permiti-me até, sentir  a ambiência de um chão cimentado liso de uma casa comum de modesto bairro popular. Imaginei a coerência sonora daquele arrastar binário – “cheq-cheq”..., cheq-cheq...”  

 
Mas, foi, sem duvida, a presença de uma escova de dentes, um tanto já gasta, diga-se de passagem, o que me confirmou uma suposição. Arrematei então, que poderia ser de uma pessoa metódica, preocupada com a preservação de seus dentes, quem sabe a requerer cuidados outros. Por tais zelos possivelmente não pertenceria a uma pessoa  jovem. Pois que, assim nos mostra a vida, que é nos verdes anos que a pressa se faz companheira do impensado na ausência de temores de consequências óbvias.

 
Juntando todos os indícios, concluí então, que algo de não muito agradável teria desviado o rumo daquela mala, e do seu dono, é claro, ora definitivamente separados.

 
Planos foram desfeitos, sabe-se lá por que. Pois não seria a mala, este prolongamento emotivo do ser, essa inseparável companheira de viagem, jogada ao mar em plena consciência, como algo destituído de valor. Seguramente que não.

 
Vontades e anseios preenchem as expectativas de uma viagem – a partida e a chegada.  Quando a gente está de malas prontas espera ouvir aquele boa viagem em sinal de bom augúrio. Nos tranquiliza a alma. Será que não merecera ele ensejos de uma boa viagem...?

 
Dei as costas ao evento. Segui meu rumo em direção à foz do rio Taquary, na curiosidade de verificar os estragos da maré de sizígio, a quela mais alta coincidente com a Lua Cheia.

 
Com o passar dos dias, camadas de areia foram soterrando a mala na vala comum do esquecimento definitivo. Viajaria rumo ao ciclo do renovar, provavelmente, na transformação da matéria,  a nutrir elementos outros. Lembrei-me da frase do físico famoso, Lavoisier: “Na natureza nada se perde, nada se cria. Tudo se transforma...” 

 
Mas, preferi enxergar  naquela mala naufragada, uma mensagem, como sendo símbolo de implícita mudança de planos. Pois, nada nesta vida, acontece por acaso.
Então, dei asas à minha imaginação; náufrago de si mesmo, cansado da vida metódica que levava, resolvera aquele homem, desfazer-se de dolorosa escravidão, daquelas ataduras apertadas dos  hábitos de rotina que conhecemos muito bem.  Ainda em tempo livrou-se aquele homem da indumentária sombria em naufrágio tão oportuno. Estaria vivo ou morto de arrependimentos. Quem sabe?

Talvez vestisse ele agora cores mais vibrantes. Nuances tão  necessárias fazendo a alegria de um bom viver... Em liberdade...

 

 

sexta-feira, 13 de junho de 2014



Guaibim-Bahia Brasil- "Gate to heaven" photo by Ernst Frank 2014





Paisagem
Passavam pelo ar aves repentinas,
O cheiro da terra era fundo e amargo,
E ao longe as cavalgadas do mar largo
Sacudiam na areia as suas crinas.

Era o céu azul, o campo verde, a terra escura,
Era a carne das árvores elástica e dura,
Eram as gotas de sangue da resina
E as folhas em que a luz se descombina.

Eram os caminhos num ir lento,
Eram as mãos profundas do vento
Era o livre e luminoso chamamento
Da asa dos espaços fugitiva.

Eram os pinheirais onde o céu poisa,
Era o peso e era a cor de cada coisa,
A sua quietude, secretamente viva,
E a sua exalação afirmativa.

Era a verdade e a força do mar largo,
Cuja voz, quando se quebra, sobe,
Era o regresso sem fim e a claridade
Das praias onde a direito o vento corre.



Sophia de Mello Breyner Andresen
Obra Poética I
Caminho
 






Frank in the garden - Guaibim Bahia Brasil 2014






Os pássaros
Ouve que estranhos pássaros de noite
Tenho defronte da janela:
Pássaros de gritos sobreagudos e selvagens
O peito cor de aurora, o bico roxo,
Falam-se de noite, trazem Dos abismos da noite lenta e quieta
Palavras estridentes e cruéis.
Cravam no luar as suas garras
E a respiração do terror desce
Das suas asas pesadas.



Sophia de Mello Breyner Andresen
Antologia
Círculo de Poesia
Moraes Editores
1975




Guaibim-Bahia-Brasil 2014






O Jardim e a casa
Não se perdeu nenhuma coisa em mim. 
Continuam as noites e os poentes 
Que escorreram na casa e no jardim, 
Continuam as vozes diferentes 
Que intactas no meu ser estão suspensas. 
Trago o terror e trago a claridade, 
E através de todas as presenças 
Caminho para a única unidade. 



Sophia de Mello Breyner Andresen







Amália Grimaldi-acrílica sobre tela 2007

A Hora da Partida
A hora da partida soa quando
Escurecem o jardim e o vento passa,
Estala o chão e as portas batem, quando
A noite cada nó em si deslaça. 
A hora da partida soa quando
As árvores parecem inspiradas
Como se tudo nelas germinasse. 

Soa quando no fundo dos espelhos
Me é estranha e longínqua a minha face
E de mim se desprende a minha vida. 



Sophia de Mello Breyner Andresen

quarta-feira, 28 de maio de 2014

A Janela do Sobrado


 
 
 
 

A Janela do Sobrado

 
(Autor: Amália Grimaldi - 2014)
 
É madrugada ainda. Vejo o Sol conduzir ao seu lugar destinado a noite que se retira lenta. Segue levando consigo meus suspiros e a lembrança de uma noite mal dormida. Ainda vejo estrelas a refletir o brilho do mistério deste breve instante. Contemplo a aurora. Me visto de sonhos.

Vê você por acaso, aquelas árvores distantes? Não seriam aqueles ciprestes lendários?  Ah, já sei – lá está a curva da estrada para Damasco!

            A janela do sobrado abria as portas do mundo. Entrava e saía sem cerimônia. Até que um dia, na viagem de retorno, me perdi. Os ciprestes desapareceram da paisagem. Havia apenas o eucalipto dominante – supridor da fábrica de papel. E assim, não mais encontraria meu rumo.

Não é que a minha estrada para Damasco desaparecera! Por um instante parei de sonhar. Mas, o desejo de viajar pelo Oriente seria mais forte. Outras janelas se abririam no tempo. Pois, sobrevive-se no sonho. O ser aí se reinventa.

Vê você por acaso vultos de almas da noite em tais muros cuspidos e urinados, caiados de fingimento branco?

Vê, são cacos de vidro ameaçadores, encimam previsões de acontecimentos nefastos na guarda do grande vazio – negligência de um terreno baldio. Patrimônio cobiçado, que ora acolhe os sujos da esquina.

 A vagar pela noite escura vejo assombração de outros. Seria a alma penada do agiota ameaçador em busca de dinheiros perdidos?

A janela do sobrado há muito se fechara. Na sala, antes habitada por insinuantes  réstias de luz, encontraria apenas sombras do que fora antes. E as minhas tranças, via-as jogadas ao chão, ao lado da cega tesoura – o tempo inexorável. E eu, desconsolada, à curva da estrada, perdia-me no sonho, em busca do rascunho que se apagara– o leve poema da menina do sobrado grande.

            Mas, qual tempo poderia ser melhor? Inverno ou Verão? Já vejo o pássaro azul, é fiel à estação. Temente ao vento súbito constrói seu ninho em lugar seguro. Observo que carrega o que parece ser o último naco do dia. Amanhã voltará. Ou quem sabe, não mais. E é assim então que nutrimos a nossa vontade imediata. Amanhã outros pássaros virão.

(foto autor)

terça-feira, 18 de março de 2014

O Bonde e o Professor

 
 
 
O bonde e o professor
 
Ainda nos anos 50 e 60, em Salvador, cidade onde nasci, vivia  eu então, no bairro do Garcia, bem em frente ao Colégio Antônio Vieira,  no antigo sobrado de construção colonial, onde no térreo funcionava a padaria do padeiro galego – meu pai. O bonde do Rio Vermelho, já de longe anunciava quando vinha vindo. Os meninos mais afoitos costumavam deitar o ouvido no trilho metálico e assim escutar a sua vibração. O bonde subia e descia, regularmente, a correr nos seus paralelos  trilhos, como a obedecer à rotina do povo pacato daquele lugar. O bonde era pontual. Assim como, também era aquela figura, notável pelos seus hábitos, do homem calado, educadamente refinado, um intelectual, que se via todos os dias vestido discretamente em terno claro e gravata. Costumava comprar pão lá na padaria, geralmente pelas tardes. Sempre no meio do povo, ao subir e descer do bonde, pé no estribo, trazendo um livro embaixo do braço. Pequenos detalhes o faziam distinguido, como sendo pessoa especial, e assim o era.  Conhecido professor de Português de escolas e colégios de Salvador, era também um professor de cátedra. Professor de  Estilística da Língua Portuguesa. Naquele tempo a figura do professor simbolizava respeito e acato. Refiro-me ao emérito Professor Raul Sá.
Quem foi estudante, nessa época em Salvador, por certo foi seu aluno ou então, já tinha ouvido sobre o seu gabarito e da sua fama. Ainda no Colégio das irmãs Sacramentinas, e mais tarde no colégio da Bahia, em Salvador, tive a honra de ser aluna do Professor Raul Sá. Além de morarmos no mesmo bairro, também frequentávamos o mesmo colégio, eu, e as duas filhas do professor.
Diante de um olhar, tão marcante, sob as lentes de grau elevado que usava, suscitava um profundo respeito. Parecia até que estava a ler os nossos pensamentos. Durante a sua aula ninguém ousaria perturbar.
Conhecedor profundo da obra de Aloísio de Azevedo, O Cortiço, acho que lhe dava prazer transitar entre os prédios antigos das ruas de Salvador, fato que, provavelmente, o identificaria com o cenário do romance do referido autor. Quem sabe a vivenciar em cada pardieiro, aqueles personagens, tão bem descritos e marcantes, como se fora uma pintura da época, a paisagem urbana e seus personagens, tão bem elaborada, literariamente,  uma pintura expressiva, feita em largas pinceladas, em cores próprias, não fugindo ao detalhe, todavia, mostrando a situação de vida daquela gente; romances e dramas, ainda  num Brasil Colonial.  
Outro dia, somente pelo prazer de rever antigas paisagens, e também  de poder recordar meus dias de menina e adolescente, caminhava eu, em companhia de Frank, meu esposo. Iniciamos nossa jornada a partir do Corredor da Vitória, e depois, passando pelos jardins do Passeio Público, (hoje totalmente decadente, assim como o palácio ao lado), alcançando a seguir o Forte de São Pedro e,  todo o atabalhoado trecho da Avenida Sete de Setembro, alcançando a seguir o Largo de São Bento, e de quebra,  o prazer em visualizar a estridente beleza da baía azul –, de todos os santos, e, minha também...
Da Praça Castro Alves, subindo a Rua Chile, enfim, fui dar  ao Centro Histórico de Salvador, por andei entre as pessoas do lugar, a observar ensimesmados turistas e condescendentes baianas, em suas tradicionais vestes, sempre atraentes e sorridentes. Embrenhei-me no meio do agitado povo por aquelas ruas e becos apertados, e olhe que não me apoquentava, aquele forte odor, típico cheiro amoniacal, (sublimação da causa justa...), enfim, sentindo a alma do povo baiano, e a minha também. Vez por outra, os fantasmas do passado faziam-se presentes. E ali, à esquina da antiga Faculdade de Medicina da Bahia, visualizei a figura circunspeta, sempre  de óculos, do  Professor Raul Sá. Seguia ele vestido em seu habitual terno de linho, livro embaixo do braço, como sempre de cabeça baixa. Via-o  todo respeitoso, a descer a ladeira do Pelourinho...
Realmente, fiz uma agradável viagem no tempo. Ao cenário do Cortiço, ao lado dos personagens de Aloísio de Azevedo, mas, principalmente, recordando aquele digno mestre da língua portuguesa,  o nobre Professor Raul Sá, aqui perpetuado em o “Bonde e o Professor”, texto da minha autoria.
Amália Grimaldi
Março, 2014-03-18