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Fotografia: Amália Grimaldi |
A mala na praia
(Crônicas do dia a dia - Amália Grimaldi)
Final de
tarde chuvosa. A mala do náufrago ali à minha frente me fez lamentar uma possível
viagem interrompida. Destino fatal?
Ausente
de fortunas, contudo, preenchida por residual sentimento, jazia ali à minha
frente, na areia da praia, inchada e molhada, a mala do náufrago incógnito. Num
relance, imaginei uma possível identidade ou, um perfil adequado para a
desconhecida criatura que seria o dono daquela mala que veio dar na praia do
Guaibim após forte ressaca.
Um quê de
essencial, quiçá da vida humana, à qual pertencera,
via-se no seu interior algumas peças de
roupa já corroídas pelo efeito do salitre. Com certeza teriam sido aqueles
pertences parte emotiva do seu dono, assim, como todas as coisas que nos pertencem
e nos cercam no âmbito doméstico. Imaginei suas mãos em cuidadosos movimentos
pensados a dobrar aquelas vestes, ajeitando-as do seu modo a fim de caber no
limitado espaço da maleta, justificando
assim quem sabe, toda a energia do
elemento pensante aí contido. Energia essa, que por ser imaterial, é infinita. Uma
etérea consciência do ser, digamos assim.
Seria
viagem curta, sem dúvida, pois a quantidade de roupa era pequena. Havia ainda
um par de chinelos de couro já gastos pelo uso. Imaginei-os calçados por
criatura de hábitos caseiros, provavelmente em rabugento resmungar em torno do
pão-nosso de cada dia. Permiti-me até, sentir
a ambiência de um chão cimentado liso de
uma casa comum de modesto bairro popular. Imaginei a coerência sonora daquele
arrastar binário – “cheq-cheq”..., cheq-cheq...”
Mas, foi,
sem duvida, a presença de uma escova de dentes, um tanto já gasta, diga-se de
passagem, o que me confirmou uma suposição. Arrematei então, que poderia ser de
uma pessoa metódica, preocupada com a preservação de seus dentes, quem sabe a
requerer cuidados outros. Por tais zelos possivelmente não pertenceria a uma
pessoa jovem. Pois que, assim nos mostra
a vida, que é nos verdes anos que a pressa se faz companheira do impensado na
ausência de temores de consequências óbvias.
Juntando
todos os indícios, concluí então, que algo de não muito agradável teria
desviado o rumo daquela mala, e do seu dono, é claro, ora definitivamente separados.
Planos
foram desfeitos, sabe-se lá por que. Pois não seria a mala, este prolongamento emotivo
do ser, essa inseparável companheira de viagem, jogada ao mar em plena
consciência, como algo destituído de valor. Seguramente que não.
Vontades
e anseios preenchem as expectativas de uma viagem – a partida e a chegada. Quando a gente está de malas prontas espera
ouvir aquele boa viagem em sinal de bom augúrio. Nos tranquiliza a alma. Será
que não merecera ele ensejos de uma boa viagem...?
Dei as
costas ao evento. Segui meu rumo em direção à foz do rio Taquary, na
curiosidade de verificar os estragos da maré de sizígio, a quela mais alta coincidente
com a Lua Cheia.
Com o
passar dos dias, camadas de areia foram soterrando a mala na vala comum do
esquecimento definitivo. Viajaria rumo ao ciclo do renovar, provavelmente, na
transformação da matéria, a nutrir
elementos outros. Lembrei-me da frase do físico famoso, Lavoisier: “Na natureza
nada se perde, nada se cria. Tudo se transforma...”
Mas, preferi
enxergar naquela mala naufragada, uma
mensagem, como sendo símbolo de implícita mudança de planos. Pois, nada nesta
vida, acontece por acaso.
Então, dei asas à minha imaginação; náufrago de
si mesmo, cansado da vida metódica que levava, resolvera aquele homem,
desfazer-se de dolorosa escravidão, daquelas ataduras apertadas dos hábitos de rotina que conhecemos muito bem. Ainda em tempo livrou-se aquele homem da
indumentária sombria em naufrágio tão oportuno. Estaria vivo ou morto de
arrependimentos. Quem sabe?
Talvez
vestisse ele agora cores mais vibrantes. Nuances tão necessárias fazendo a alegria de um bom viver...
Em liberdade...
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