A voz do muezim
Lembrava-me de alegrias passadas, quando quermesses faziam o centro das
festas de largo. Igreja iluminada, o
coreto e a filarmônica. Alfazemas e sorrisos. Abraços e apertos de mão. A malícia
do olhar, e o lirismo todo. O silencio as vezes poderá nos revelar o sussurro de
coisas esquecidas. Na verdade, devolvendo uma parte do nosso eu, esse frágil
inquilino, o silencio fala. Sim, através
de caras imagens que deixamos para traz e que por vezes nos vem a mente. Talvez
a completar um certo vazio de anseios,
nesse mundo caduco de falas sem retorno, mundo desacreditado, onde
portas de oportunidades, para muitos, encontram-se fechadas. Entre a morada do
passado e a labuta da mudança para o novo destino, frente a um mundo de forcas
em conflito, costumamos mergulhar, quanto mais fundo, mais longe de nos mesmos.
E assim, muitas vezes extrapolamos o contorno de possibilidades reais.
Salvador, canção de tempo bom. Oração desencontrada. Em desvio de luzes e sombras oportunas, retorno a minha casa, meu berço. Rococó desmantelado pelo tempo.Baixa dos Sapateiros, festa de todo dia. Mercados coloridos de alegrias. Contorno suas afamadas esquinas, e alamedas de seus muitos bazares. Estou a escutar aquele chamado estimado: ‘ Pode entrar, freguesa, faça favor! Salim fazer preço bom...’
Baixa dos Sapateiros,
e o aguaceiro de tardes de verão. Pedra lisa molhada, e no descuido, o
escorregão amparado. Não! Vocês não
estão sós. Logo ali, ao lado do bazar do
Turco, uma parada, um bate-papo. Tempo para um cafezinho, um menorzinho no bar
do Galego. Conluio, fuxico e maledicências. Entre o cuspe e o esconjuro, ao pé
do batente, o grude dos vícios. Mistério de uma rua cruzada, por discrepâncias,
e por toda gente. Uma rua acessível a todos os pensamentos, e
acontecimentos. Reais e impossivelmente reais.
Bafo de muitas vozes.
Sob as pedras de suas calcadas maltratadas, e sob a veste da alma de seres do passado, vive-se
hoje um luto. Sim, luto na morte da alegria. E, saudades do quintal da antiga casa,
e daquele nosso contentamento nativo. Vejo naquelas paredes destratadas, o limo
da umidade que o tempo gerou, toda aquela fertilidade na generosidade, de uma rara
humanidade, hoje destratada.
Mural da nossa cultura, na passagem de gerações, o esboço e a cor se
afirmaram no desenho confuso dessa paisagem. Rixa de homens, xingamento, e cortesia
em apertos de mão. Do ciume ao ódio, ao
lado de bondades outras, guarda-se dessa humanidade, o melhor sentido da vida. O abraco
espontâneo, gesto fraternal que por
vezes poderá se perder na desdita, na
voz irada que sai da garganta. Tracos de bondade por se recuperar. Conflito de gerações marcam a historia da trajetória de todo ser, no tempo e no seu devido espaço. Ah,
esse mundo é mesmo, um eterno vir-a-ser!
Lamento calada as palmeiras cortadas, e o sussurro do vento sumido ao baldio. Enxergo atrás da porta fechada o fantasma de sapatos esquecidos, e o descanso aborrecido, o do que já fora antes. Mas, não! Aquele mercador de panos para mim não morreu. Rolo e driblo tapete à porta, minha estrela ao cordel seguro. Este lugar, conheço-o muito bem. O poente não me contradiz. Ausente é a porta de fundos, mas aquele velho cachorro cansado, ao final do dia, ainda volta a aquecer o batente do seu dono.
Amalia Grimaldi, Cronicas do meu tempo. Melbourne, Julho, 2020.