Um vasto quintal de argumentos
Para José Grimaldi Mariano
Texto do livro de crônicas: "Nada mudou por aqui..."
Autor: Amália Grimaldi
À esquina de uma longa rua de acasos contorno minhas certezas. Aí não existe contramão. Entre galinhas e
fruteiras abro meus caminhos. São meadas antigas, embaraçadas linhas de um vasto quintal
de argumentos. Aos fundos de tão
conhecido casarão, no varal esquecido, encontra-se um bramante retorcido. Alma
nobre, pareceu-me ainda guardar nos contornos
aquele corpo que lhe foi justo um dia.
No varal, a camisa esquecida. Manto da verde descrença, esse contorcido bramante, muito suado de então, ora encoberto pelo fino véu do mofo do tempo, tem fala própria. Indefinível, no misterioso acontecer, parece vestir a sombra de todos os acontecimentos domésticos. O bom e o mau momento. Esse velho trapo, o bramante retorcido, no tempo, como todas as coisas palpáveis, inexoravelmente, aos poucos vai se indo, condenado ao escuro socavão do esquecimento.
Ordenar os pensamentos torna-se necessário ao equilíbrio de cada um.
Aqui, moram os meus fantasmas. Como hoje, perdido em conflitos de meias
palavras, lembro-me bem, já lhe faltava o essencial meio, para que pudesse
completar o botão justificada noção de encontro. Dessa sua aberta casa, hoje,
um frágil bramido me escapa. Do meu peito antigo suspiro escondido. Abafado. Lembrança de conflitos e argumentos
insolúveis.
Palco
de grandes acontecimentos, ao fundo desse acidentado quintal, havia um feioso
barracão de madeira, coberto por folhas de zinco. Bem ao lado deste, a bem
aventurança centenária de um frondoso pé de cajá. Razão da nossa alegria; de meus
irmãos e de meus primos, Maria de Fátima e José.
Razão de todos os pássaros, também de abelhas e
marimbondos, aí não faltava a mesmice daqueles conhecidos bichos urbanos, amados e odiados;
gatos e ratos de toda natureza. Isto sem falar na criançada da barulhenta, mas querida vizinhança. Todo ano
o pé de cajá deitava fartura. Frutas rolavam pelo quintal abaixo. No alto dos meus doze anos, olhava para aqueles enormes galhos
e já imaginava o fardo da generosa árvore, a carregar o enorme peso de seus tempos. Eram anos batidos, de
intempéries, de chuva e de sol. Anos de vida pulsátil, de todos nós crianças.
No
interior de um ensombrado barracão de madeira, lembro-me bem, quando chovia, fazia um barulhão danando. Abafava as nossas
vozes. Tio Mariano seguia no labor de todos os seus dias. Um desenfreado bater de tralhas. Havia aí
um janelão singular com pregos entortados à mostra. Os frustrantes, os que não conseguiram chegar até o
fim da missão. Este janelão, mal
ajambrado, foi feito de madeira dura. Na esforçada boa intenção, (de quem o fazia ), guiava a mão
um serrote torto, que terminou por gerar toscas taboas. Com dificuldade, devido ao seu desmesurado peso e tamanho só se conseguiria abrir essa janela se
empurrasse para fora. Diferente de outras janelas, as de
boa carpintaria trabalhadas na máquina. certamente com menos esforço braçal, sem
ter que guiar um genioso serrote torto. Contudo,
este janelão, era bem especial. Quando se abria, descortinava
aquele pedaço de verde mata, de mamonas e goiabeiras. Fazia a alegria de todos nós. Quintal nunca zelado,
lugar este, onde disputavam gatos e ratos os restos de comida que aí se atirava. Um
velho costume doméstico.
Havia sempre à mão uma escora de madeira para manter o janelão aberto.
Um deslize, e pronto! Nossos dedos seriam então dolorosamente esmagados. De vez
em quando se ouvia aquele robusto baque e a seguir o berro de dor. Já se mostrava a unha roxa. E a vítima, devidamente castigada, se via
calada a um canto da casa. No interior daquele barracão, lembro-me bem, com frequência acidentes aconteciam. Coisas do ofício.
Indústria
de fundo de quintal. O barracão encontrava-se sempre ocupado. Cheio de
quinquilharias. Prateleiras abarrotadas,
cheias de garrafas e garrafões. Material necessário, que a vizinhança,
sempre solícita, fornecia de bom grado. Assim
era a casa de tia Gem e de tio Mariano. A casa da infância feliz. Na modesta curva grande, do pacato bairro do Garcia.
Meus primos
sabiam ler partitura musical. Deles tinha inveja, pois também desejava tocar piano, coisa que
nunca aconteceu. Não podia ver um piano aberto que logo corria meus dedos no
seu marfim. Maria de Fátima aos rapazes encantava: "toque besame mucho..." A pedidos tirava de cor ao piano. Quanto ao primo José, seu irmão mais novo, este não ficava atrás, no esforçado abrir e
fechar do fole do acordeom deleitava ouvidos alheios. Orgulho dos pais, na escola era o melhor da turma. Que menino prodígio! José tocava com partitura, mas tinha o
dom de saber tocar de ouvido. Sabia juntar gente ao seu
redor. Ao lado de micos e passarinhos, legítimos moradores da centenária árvore, crescemos juntos. A escutar melodias festivas outras, alvíssaras de verões
por chegar no alarido de cigarras.
Enormes
formigas aladas, as conhecidas tanajuras, estas chegavam com o inverno. Imobilizadas no palito, se faziam diversão de criança. Que prazer
mais judiado! Hoje até me sinto culpada. Assim, estações iam passando. Entra inverno e sai
verão. Vai chuva e vem sol. E, cantos de cigarra.
Pluft!!!
Criação explosiva ditava ponto certo. Máquina mirabolante aquela. Da Vinci fora
seu mestre, disto agora tenho certeza. Teria orgulho de seu discípulo, se vivo hoje estivesse. Tio Mariano, homem inventivo, mente acesa, fórmula não
esquecia. Fazia e convencia no que sempre lhe agradava. Ah, e suas pipocas doces de arroz! Que
delícia! Antes de liberar tais produtos para as vendas, eu e meus primos, sempre
por perto, oportunamente servíamos de cobaias. Um espesso xarope de guaraná já
se via a escorrer pelos cantos da boca.
E na roupa, lambuzada e grudenta, o sinal do prazer que logo no tanque se amontoava, esperando por água e sabão. Hora de lavar. Bons tempos.
"Porta aberta". Nostalgia na voz de Vicente Celestino. Na sua satisfação, rente ao batente, tio Mariano, batia e retorcia. Na sua satisfação maior assobiava a melodia preferida. - Sismógrafo de boas intenções. Foi aí nessa casa que passei os bons e maus momentos da minha infância e boa parte da minha adolescência. Até que um dia, juntamente com a minha irmã Carmen, fomos mandadas para o convento das freiras, lá nos Barris, um conhecido bairro de Salvador, não tão longe de onde vivíamos então. Seria um novo começo, quando aprenderíamos a nos comportar, como "boas mocinhas"; "pintando o sete".
Mal amanhado era aquele barracão de madeira, mas, era aí que nasciam as grandes
invenções. As dele e as nossas. Aí existia, acima de tudo, crianças contentes. E, a alegria do
homem, um ser livre a por em prática suas ideias geniais. Cabelo, o pouco que tinha,
já se via em desalinho. Suas mãos, sempre
lambuzadas, de graxa ou de carvão, deixava pintada aquela sua cara suada de
felicidade. Tio
Mariano sempre fazia o que lhe dava na cabeça. Patrão, este não lhe
convenceria. Sábio homem aí se via. Como ninguém sabia fazer amigos – deixava para
cobrar os devidos somente mais tarde. Só depois de convencer o freguês na
amostra grátis.
Voltei
lá um dia, muitos anos depois, procurando reaver um pouco da essência daqueles meus verdes tempos. Procurando
sentir o cheiro de cajá madura. Mas, dessa memorável paisagem de meus
dias de menina, somente contente lembrança foi o que me restou, nas muitas vozes de crianças que ainda escuto por aí.
Sem dó nem piedade, a malvada esteira
do tempo levou embora tal tempo de vida aí construída. O
frio trator da necessidade imobiliária arrastou consigo a graciosa casa e o barracão feioso. Tudo ao
redor em poeira se transformou.
Aquele bangalô, de paredes brancas, piso em parquê,
vermelhão encerado e plantas ornamentais, crótons e palmeiras, pelo corredor de entrada perfiladas, como sentinelas de alegrias, faziam bem-vindo o chegante. E olhe que não faltavam amigos! Sempre bem acolhidos. Mesa generosa, opulentos cozidos de carne e verduras, generosas feijoadas e
paneladas de sarapatel., aí não faltavam. Esta casa, de piso brilhante, e de gente simples tombou. As da
vizinhança amiga também. Tio Mariano e tia Gem, como era de se esperar, eles
também se foram. Seguiram o rumo dos céus.
Hoje,
casas verticais, moradias impessoais e desvirtuadas, tomaram conta do lugar.
Do rico homem da esquina, no jardim, a antiga palmeira ainda se ergue sã. Dissonante parte do mito, é
ela quem me assusta. O monumento está prestes a cair. Já nem sinto mais aquele
cheiro bom de pipoca doce. Demolir é necessário, comenta-se. Não sei qual a intenção. A palmeira no jardim
testemunha o momento, o encontro marcado, lembrança do meu primeiro namorado. Qual monumento do tempo, esse pedestal também encontra-se prestes a cair. É verdade. Pedras,
estão a rolar insanas.
Tangerinas não dormem, apenas exalam
prazeres, de muitas bocas ávidas, grutas úmidas gratuitas. E, no silêncio da palavra
guardada, notável constatação: encontro-me viva! Estou aqui, arrumando palavras, coordenando minhas lembranças a fim de contar essa história! Os pingos da chuva de antes
diluiu o poder do sal amargo nefasto. Retorno ao vasto quintal de argumentos. Olho para trás. Contorno a esquina dessa rua de acasos.
Até que se negue o instante o prazer, corpo vivo carregam as formigas. Pela garganta da noite úmida passa o bocejo molhado. E, a malícia asfixiante. Até que se negue esse instante, os fios desse meu cabelo branco é meada que sem esforço o tempo desenrola.