quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Um Vasto Quintal de Argumentos



Um vasto quintal de argumentos

Para José Grimaldi Mariano

Texto do livro de crônicas: "Nada mudou por aqui..."
Autor: Amália Grimaldi

À esquina de uma longa rua de acasos contorno minhas certezas.  Aí não existe contramão. Entre galinhas e fruteiras abro meus caminhos. São meadas antigas, embaraçadas linhas de um vasto quintal de argumentos.  Aos fundos de tão conhecido casarão, no varal esquecido, encontra-se um bramante retorcido. Alma nobre,  pareceu-me ainda guardar nos contornos aquele corpo que lhe foi justo um dia.
 
No varal, a camisa esquecida.  Manto da verde descrença, esse contorcido bramante, muito suado de então, ora encoberto pelo fino véu do mofo do tempo, tem  fala própria.  Indefinível, no misterioso acontecer, parece vestir a sombra de todos os acontecimentos domésticos. O bom e o mau momento. Esse velho trapo, o bramante retorcido, no tempo, como todas as coisas palpáveis, inexoravelmente, aos poucos vai se indo, condenado ao escuro socavão do esquecimento.
 
Ordenar os pensamentos torna-se necessário ao equilíbrio de cada um. Aqui, moram os meus fantasmas. Como hoje, perdido em conflitos de meias palavras, lembro-me bem, já lhe faltava o essencial meio, para que pudesse completar o botão justificada noção de encontro. Dessa sua aberta casa, hoje, um frágil bramido me escapa. Do meu peito antigo suspiro escondido. Abafado.  Lembrança de conflitos e argumentos insolúveis.
         
 Palco de grandes acontecimentos, ao fundo desse acidentado quintal, havia um feioso barracão de madeira, coberto por folhas de zinco. Bem ao lado deste, a bem aventurança centenária de um frondoso pé de cajá. Razão da nossa alegria; de meus irmãos e de meus primos, Maria de Fátima e José.
 
Razão de todos os pássaros, também de abelhas e marimbondos, aí não faltava  a mesmice daqueles conhecidos bichos urbanos, amados e odiados; gatos e ratos de toda natureza. Isto sem falar na criançada da barulhenta, mas querida vizinhança. Todo ano o pé de cajá deitava fartura. Frutas rolavam pelo quintal abaixo. No alto dos meus doze anos, olhava para aqueles enormes galhos e já imaginava o fardo da generosa árvore, a carregar o enorme peso de seus tempos. Eram anos batidos, de intempéries, de chuva e de sol. Anos de vida pulsátil, de todos nós crianças.  
          
No interior de um ensombrado barracão de madeira, lembro-me bem, quando chovia,  fazia um barulhão danando. Abafava as nossas vozes. Tio Mariano seguia no labor de todos os seus dias. Um desenfreado bater de tralhas. Havia aí um janelão singular com pregos entortados à mostra.  Os frustrantes, os que não conseguiram chegar até o fim da missão. Este janelão, mal ajambrado,  foi feito de madeira dura.   Na esforçada boa intenção, (de quem o fazia ), guiava a mão um serrote torto,  que terminou por gerar toscas taboas.  Com dificuldade, devido ao seu desmesurado peso e tamanho só se conseguiria abrir essa janela se empurrasse para fora.  Diferente de outras janelas, as de boa carpintaria trabalhadas na máquina. certamente com menos esforço braçal, sem ter que guiar um genioso serrote torto.  Contudo, este janelão, era bem especial. Quando se abria,  descortinava aquele pedaço de verde mata, de mamonas e goiabeiras. Fazia a alegria de todos nós. Quintal nunca zelado, lugar este, onde disputavam  gatos e ratos os restos de comida que aí se atirava. Um velho costume doméstico.
              
Havia sempre à mão uma escora de madeira para manter o janelão aberto.       Um deslize, e pronto! Nossos dedos seriam então dolorosamente esmagados. De vez em quando se ouvia aquele robusto baque e a seguir o berro de dor.  Já se mostrava a unha roxa. E a vítima, devidamente castigada, se via calada a um canto da casa. No interior daquele barracão, lembro-me bem, com frequência acidentes aconteciam. Coisas do ofício.
             
Indústria de fundo de quintal. O barracão encontrava-se sempre ocupado. Cheio de quinquilharias. Prateleiras abarrotadas,  cheias de garrafas e garrafões. Material necessário, que a vizinhança, sempre solícita, fornecia de bom grado. Assim era a casa de tia Gem e de tio Mariano. A casa da infância feliz. Na modesta curva grande, do pacato bairro do Garcia. 
             
Meus primos sabiam ler partitura musical. Deles tinha inveja, pois também desejava tocar piano, coisa que nunca aconteceu. Não podia ver um piano aberto que logo corria meus dedos no seu marfim.  Maria de Fátima aos rapazes encantava: "toque besame mucho..."  A pedidos tirava de cor ao piano. Quanto ao primo José, seu irmão mais novo, este não ficava atrás, no esforçado abrir e fechar do fole do acordeom  deleitava  ouvidos alheios. Orgulho dos pais, na escola era o melhor da turma.   Que menino prodígio! José tocava com partitura, mas tinha o dom de saber tocar de ouvido. Sabia juntar gente ao seu redor.   Ao lado de micos e passarinhos, legítimos moradores da centenária árvore, crescemos juntos.  A escutar melodias festivas outras, alvíssaras de verões por chegar no alarido de cigarras.
             
Enormes formigas aladas, as conhecidas tanajuras, estas chegavam com o  inverno. Imobilizadas no palito, se faziam diversão de criança. Que prazer mais judiado!  Hoje até me sinto culpada.  Assim, estações iam passando. Entra inverno e sai verão. Vai chuva e vem sol. E, cantos de cigarra.
             
Pluft!!! Criação explosiva ditava ponto certo. Máquina mirabolante aquela. Da Vinci fora seu mestre, disto agora tenho certeza. Teria orgulho de seu discípulo, se vivo hoje estivesse. Tio Mariano, homem inventivo, mente acesa, fórmula não esquecia. Fazia e convencia no que sempre lhe agradava.  Ah, e suas pipocas doces de arroz! Que delícia! Antes de liberar tais produtos para as vendas, eu e meus primos, sempre por perto, oportunamente servíamos de cobaias. Um espesso xarope de guaraná já se via a escorrer pelos cantos da  boca. E na roupa, lambuzada e grudenta, o sinal do prazer que logo no tanque se amontoava, esperando por água e sabão. Hora de lavar. Bons tempos.
 
 "Porta aberta". Nostalgia na voz de Vicente Celestino. Na sua satisfação, rente ao batente, tio Mariano, batia e retorcia. Na sua satisfação maior assobiava a melodia preferida. - Sismógrafo de boas intenções. Foi aí nessa casa que passei os bons e maus momentos da minha infância e boa parte da minha adolescência. Até que um dia, juntamente com a minha irmã Carmen, fomos mandadas para o convento das freiras, lá nos Barris, um conhecido bairro de Salvador, não tão longe de onde vivíamos então. Seria um novo começo, quando aprenderíamos a nos comportar, como "boas mocinhas"; "pintando o sete".  
 
Mal amanhado era aquele barracão de madeira, mas, era aí que nasciam as grandes invenções. As dele e as nossas.  Aí existia, acima de tudo, crianças contentes. E, a alegria do homem, um ser livre a por em prática suas ideias geniais. Cabelo, o pouco que tinha, já se via  em desalinho. Suas mãos, sempre lambuzadas, de graxa ou de carvão, deixava pintada aquela sua  cara suada de felicidade. Tio Mariano sempre fazia o que lhe dava na cabeça. Patrão, este não lhe convenceria. Sábio homem aí se via. Como ninguém sabia fazer amigos – deixava para cobrar os devidos somente mais tarde. Só depois de convencer o freguês na amostra grátis.
             
Voltei lá um dia, muitos anos depois, procurando reaver um pouco da essência daqueles meus verdes tempos. Procurando sentir o cheiro de cajá madura. Mas, dessa memorável paisagem de meus dias de menina, somente  contente lembrança foi o que me restou, nas muitas vozes de crianças que ainda escuto por aí.  
              
Sem dó nem piedade, a malvada esteira do tempo levou embora tal tempo de vida aí construída. O frio trator da necessidade imobiliária arrastou consigo a graciosa casa e o barracão feioso.  Tudo ao redor em poeira se transformou.
 
Aquele bangalô, de paredes brancas, piso em parquê, vermelhão encerado e plantas ornamentais, crótons e palmeiras, pelo corredor de entrada perfiladas, como sentinelas de alegrias, faziam bem-vindo o chegante. E olhe que não faltavam amigos! Sempre bem acolhidos. Mesa generosa, opulentos cozidos de carne e verduras,  generosas feijoadas e paneladas de sarapatel., aí não faltavam.  Esta casa, de piso brilhante, e de gente simples tombou. As da vizinhança amiga também. Tio Mariano e tia Gem, como era de se esperar, eles também se foram. Seguiram o rumo dos céus.
         
Hoje, casas verticais, moradias impessoais e desvirtuadas, tomaram conta do lugar. Do rico homem da esquina, no jardim, a antiga palmeira ainda se ergue sã. Dissonante parte do mito, é ela quem me assusta. O monumento está prestes a cair. Já nem sinto mais aquele cheiro bom de pipoca doce. Demolir é necessário, comenta-se.  Não sei qual a intenção. A palmeira no jardim testemunha o momento, o encontro marcado, lembrança do meu primeiro namorado. Qual monumento do tempo, esse pedestal também encontra-se prestes a cair. É verdade. Pedras, estão a rolar insanas.
         
Tangerinas não dormem, apenas exalam prazeres, de muitas bocas ávidas, grutas úmidas gratuitas. E, no silêncio da palavra guardada, notável constatação: encontro-me viva! Estou aqui, arrumando palavras, coordenando minhas lembranças a fim de  contar essa história! Os pingos da chuva de antes diluiu o poder do sal amargo nefasto.  Retorno ao vasto quintal de argumentos. Olho para trás. Contorno a esquina dessa rua de acasos.
 
Até que se negue o instante o prazer, corpo vivo carregam as formigas. Pela garganta da noite úmida passa o bocejo molhado. E, a  malícia asfixiante. Até que se negue esse instante, os fios desse meu cabelo branco é meada que sem esforço o tempo desenrola.  

 

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Rica algaravia do tempo


Rica algaravia do tempo

 

Sussurro de ventos

Sobrado de cores. Baú cortejado

Bugigangas no que te faz feliz

Casa antes habitada. Livro da memória

Páginas de todos os meus dias

Esse telhado ainda resiste íntegro

Resiste ainda em seus caibros e barrotes

Espinha dorsal desse tempo que sustentava forte

Ausente de telhas que se partiram aos ventos

Eis que a candeia se apaga

Esfuma-se à distância casa do pão e vinho

Naufraga o tempo em velozes águas de esforço legítimo

O mastro partido. Os vinhedos esquecidos

Distante lembrança. Morrida. Descansa na saudade.

– Minhas confiscadas cores.

 
(de Meus Poemas-amália Grimaldi)

quarta-feira, 8 de maio de 2013


Prazeroso encontro. Ao poeta pernambucano Pedro de Albuquerque, de Poço da Panela, ao seu Alumbramento.

 

 “O poeta se faz vidente por meio de um longo, imenso e refletido desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sentimento, de loucura; ele procura ele mesmo, ele esgota nele todos os venenos, para só guardar as quintessências”.

( Quintessências - Baudelaire).

 

Alumbramento. Fenômenos enganadores habitam o abissal dessa perversa ilusão cromática. Acontecimentos espetaculares fazem desse universo uma realidade soberana. Entre os amantes, o desejo. Vínculo que aglutina, na certeza que propicia. Cumplicidade inevitável. Temperamental. Às vezes fatal.

A capacidade do trágico na condição humana, o absurdo, entre aspirações e realidade. Para desmascarar o cinismo e o vazio por trás de códigos reguladores, caberia o grito ao ser, sua insatisfação. Mas o homem é um nada. Abandona  aqueles que ama, e também é abandonado. O homem é impotente perante as desgraças que presencia, por isso mesmo finge não as ver.

A necessidade do contato e da reflexão ao tato nos leva à leitura do homem cego. Com certeza sugere uma leitura de código Braile. Extrapola o conceito, para além da objetividade que se pretende em si. Nessas suas entrelinhas nota-se o desencadear de uma escrita sutil que levará o observador para além da leitura que parece sugerir. Na plasticidade estética da sua linguagem existe provocação; desvendar o real atrás da porta.

A meu ver, a arte do cortejar poderá ser sintética. Ou melhor, subjetiva. Atende a um corte esguio e limpo, tendendo ao minimalismo, diria eu. Para não dizer, ao animalismo espetacular.

O tenso momento.  A pressa.  Seria este o agente catalisador de todo o  processo na paixão do  sentimento que avassala. Uma vez exibido, corpos nus, tudo na pressa será desmontado. O licor desse cálice logo se evapora. Sem perspectiva, nem promessas de permanência. O amante então terá que ser hábil ao manter a quintessência, o sabor inerente.

O espetáculo do acontecer é rápido. Logo secará a saliva do beijo. E, as rosas, logo se veem murchas. Tudo será aterrado sob a avalanche avassaladora do momentum. Esquecido será.

Mas, tudo é permitido ao ser quando acredita no seu “Alumbramento”. Sem mentiras. Somente o contato de pele já vale a pena. Às vezes o silêncio aflora, reforça o mistério que o ser emana. Se nada tem a dizer, melhor ficar calado. Nem é preciso justificar.

Amália Grimaldi – Resposta ao “Alumbramento” de Pedro de Albuquerque.Maio, 2013.

 

 

segunda-feira, 22 de abril de 2013

A Filha do Padeiro Galego

Quando nasci, pensando em mim, meu pai,
no duro solo do pátio murado, meu pai,
plantou uma árvore.

Pensando em mim, talvez, mas fugindo de si.
Pensando em mim, meu pai, libertou o cego pássaro da gaiola. E este, no rastro do cômodo cativeiro resignado, às sombras da tarde, logo regressaria.

Acredito também, desejasse meu pai, escrever algo. Talvez a justificar o direito de viver, a medir caminhos de águas,  a fugir de si mesmo; no seu modo de fazer e no que faria. Pareceria ser igual. Mas não era. A linguagem muda é depurada. Tem conteúdo.

Pensando em mim, no que fora antes, meu pai, a marchar obediente, por estreitos caminhos de angústia, imaginou-me, num pedestal de estátua.

Ao vento súbito, a solidão enxotada. Imigrante galego, despertaria no assobio do seu trovadoresco silêncio. Silêncio este, onde  palavras, dançariam no discurso do  pensamento primitivo. Sem o adequado articular verbal, contudo, num silêncio de denúncia aos seus vinte e poucos anos, de palavras perdidas, no mar da angústia, quando à bordo do grande vapor Alcântara, com outros, atravessou o Atlântico. Aportou na Bahia de Todos os Santos. Áspero chão. Limbo do ser. Pátio de noites insones.

O terreno da sua antiga canção, devastado, ora baldio, de versos necessários, se convertera no mito distante; a terra galega, útero fértil.   Os vinhais, distantes, morridos no tempo. Os canastros, vazios, de argumentos necessários, se quedaram inúteis. 

Pássaro cativo, alma da sua poesia, ao cair da tarde, logo regressaria. Restou-lhe lembranças, frias estrelas em orvalho de serenos distantes, desejados jasmins da infância que nunca vingariam. 

No argumento daqueles seus dias, tarefa pesada, mantinha a mão na massa do pão. Argamassa de todos os meus dias, alimento dessa narrativa. Eu, sou a filha, desse padeiro galego!